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Sergipe

O FOGO DA CONSCIÊNCIA

Publicada em 02/11/25 às 16:13h - 84 visualizações

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O FOGO DA CONSCIÊNCIA
 (Foto: TRIBUNA CULTURAL Divulgação)
Por Damião Oliveira Santos*

Nasci literalmente nesta casa, no Bairro Botequim, periferia de Estância. É chão de barro e de lembrança. Ali ainda mora Gaô, minha mãe, ao lado da memória viva de meu pai, Seu Guilherme. Foi dali que saí — um menino preto, de uma rua simples — para percorrer caminhos que a educação abriu. Hoje, como professor com mestrado e doutorado em universidade pública, eu sei: cada livro que li foi uma chave; cada sala de aula, um degrau.

Estamos às vésperas do Dia da Consciência Negra, e ainda é preciso dizer — e repetir — que a população negra, formada por pessoas pretas e pardas, é maioria neste país. Maioria que enche os ônibus, as filas do SUS, as cozinhas e as obras. Mas também maioria nas estatísticas da bala “perdida” — que nunca se perde —, nas prisões, no desemprego, no desalento.

A cada chacina, como a que vimos recentemente no Rio de Janeiro, o Estado reafirma o que já sabemos: ele só chega inteiro quando vem armado. O Plano Nacional de Redução da Letalidade Policial, que poderia salvar vidas, foi descartado pelo governo carioca. Enquanto isso, helicópteros disparam sobre lajes, e mães negras enterram seus filhos.

Mas é bom lembrar: o crime não mora apenas no morro.
Quem tem o verdadeiro poder do crime está no asfalto — nas planilhas, nas conexões políticas, nas milícias disfarçadas de empreiteira. A Faria Lima, tida como símbolo de sucesso, foi reconhecida em investigações como espaço de financiamento para o tráfico e para a indústria das armas. A engrenagem da morte também veste terno.

A África é a gênese de tudo: da história, da ciência e da arte. Foi de lá que herdamos o ritmo do tambor, o pensamento, o corpo que dança e pensa ao mesmo tempo. E é por isso que, quando o povo preto canta, não é só música — é memória. É por isso que o samba, a capoeira, o maracatu, o jongo, o artesanato e o axé são manifestações de sobrevivência.

Nossa história também se escreve com nomes que o tempo tenta apagar. Zumbi e Dandara, sim — mas também João Mulungu, Beatriz Nascimento, Raimundo Souza Dantas, Zé de Dome, todos sergipanos, e Dona Nadir da Mussuca, guardiã da cultura que não se dobra.

E há ainda meus irmãos: Adilson, Ademilson e Adilsa. Seus filhos carregam um brilho que me emociona. São mais fortes, mais ousados, mais conscientes. Resistir virou herança. Dona Joana e Seu Guilherme abriram o caminho; a base agora vem mais firme, mais preparada.

A consciência não nasce pronta. É um processo lento e dolorido, feito de espelhos que não refletem, de livros que faltam, de silêncios que pesam. Crescer preto é aprender a se amar num país que insiste em negar a tua beleza. Por isso, o letramento racial é urgente: ele é cura e escudo, alimento e fogo.

O navio negreiro e o camburão pertencem à mesma travessia: corpos negros sendo transportados, vigiados, punidos. Mas a história não termina no açoite. Termina — ou recomeça — no gesto de quem educa, ensina, ergue. Porque a educação ainda é a melhor forma de vingança. É pela escola pública que a gente forja o juiz, a médica, o engenheiro, a advogada, o professor — e muda, por dentro, a estrutura do mundo.

Mas é preciso dizer sem medo: o fogo da violência não é só metáfora. É também revide. É o grito de quem cansou de morrer calado. Porque consciência sem ação é só palavra.

E talvez seja isso o que mais me move: a ideia de que cada menino e menina preta do Botequim possa crescer sabendo que o futuro também lhes pertence. Que a chama que vem de dentro não apaga. Que a Consciência Negra não é feriado — é incêndio, é tambor que bate no peito, é dança que atravessa gerações. É saber que não somente o samba, a capoeira, e a arte nos tornam infinitos, mas também a palavra, a ciência, o conhecimento e o pensamento crítico, mesmo quando o mundo tenta nos reduzir.

E ao mesmo tempo, é ato de resistência. É denúncia às milícias, aos traficantes de farda e terno, aos governantes que ignoram a vida negra. É luta por escola pública forte, por políticas que nos incluam, por justiça que nos alcance. É saber que só ocupando o poder poderemos impedir que o sangue continue sendo moeda de troca.

“Em um país marcado pela violência estrutural, cada voto é um ato de poder real: quantas vidas pretas ele pode proteger ou condenar?”

Porque a Consciência Negra é fogo e chão, memória e revide, poesia e ação. É ponte entre a história e o amanhã, entre o Botequim e o mundo, entre a África e Estância, entre quem foi e quem será.

 Damião Oliveira Santos é Doutor e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Sergipe e graduado em Educação Física pela UFS (2001). É professor de Educação Física na rede da Secretaria de Estado da Educação/SEDUC-SE e no ensino fundamental na Secretaria de Educação do Município de Estância-SE.



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